
A LINGUAGEM DA COR
SONORIDADES DA PERDA E DO LUTO NA PINTURA
Comunicação apresentada na mesa-redonda intitulada “Lutos Urbanos”
Nota importante:
A leitura da perda e do luto na pintura que de seguida propomos é da nossa inteira responsabilidade e não vincula os autores das obras apresentadas.
Sumário
· I Parte
Introdução
Cor / emoção
O vazio e o silêncio
· II Parte
Uma viagem à pintura de Domingos Pinho (obras do período compreendido entre 1970 e 1981)
Bibliografia e webgrafia
I PARTE
Introdução
A pintura - ressonância de múltiplos sentimentos e emoções - expressa esse “som interior” mediante um vocabulário pictórico complexo, rico e poderoso: a linguagem da cor.
A perda e o luto surgem neste âmbito com sonoridades particulares e, frequentemente, apresentam-se como domínios imateriais enfatizados pelo vazio e pelo silêncio.
Iremos delinear de seguida este universo sensível.
Cor/Emoção
A cor é a tecla; o olho o martelo. A alma, o instrumento de mil cordas. O artista é a mão que, ao tocar nesta ou naquela tecla, obtém da alma a vibração justa. (Kandinsky, 1987)
Polissémico e interdisciplinar, “o conceito de cor, em termos de identificação percetiva, é uma consequência direta da subjetividade da experiência de sensação cromática”. (Torres, 2015)
Não obstante esta subjetividade dos fenómenos cromáticos, Goethe (1995) identifica alguns “efeitos morais” das cores como, por exemplo:
· A jovialidade e tranquila estimulação da cor amarela;
· O calor e voluptuosidade da cor amarelo-avermelhado;
· A gravidade, dignidade e beleza do vermelho puro;
· A satisfação genuína transmitida pela cor verde;
· A frescura, quietude e espiritualidade da cor azul.
Ou seja, uma cor ou uma interação de cores, são suscetíveis de provocar ancoragens de ordem sensorial com sabor afetivo. (Souriau, 1990). Veja-se a este propósito as próximas imagens, memórias de pinturas em que o espírito se fez matéria.
Ofélia (1851-52), John Everett Millais
Na obra Ofélia (1851-52) de John Everett Millais - em que os detalhes do espaço que envolve esta personagem de William Shakespeare figuram como acessórios simbólicos, mediando uma realidade que frustra os desejos e o mundo da fantasia que busca a sua satisfação - a cor institui-se como uma forma de sublimar os sentidos.
Por sua vez, na Guernica de Picasso (1937), onde no campo visual surgem corpos fragmentados expressando uma sensação de tragédia, dilaceração e destruição, a abordagem monocromática - com preto, branco e cinzento - traduz um sentimento profundo de luto, sugerindo a ideia de que a vida e a liberdade foram esmagadas.
Guernica (1937), Picasso
A linguagem da cor, traduzindo sentimentos de perda e luto, está igualmente patente em múltiplas obras da arte religiosa e da arte sacra centradas na narrativa histórica da crucificação. Destaca-se a este respeito as imagens que se seguem sobre o Retábulo de Issenheim e sobre a Recordação de Colmar.
O Retábulo de Issenheim, do pintor Matthias Grünewald, foi elaborado entre 1512 e 1516. É formado por 9 painéis, sendo o mais conhecido a sua tábua central, com uma crucificação. Encontra-se no museu Unterlinden de Colmar.
Recordação de Colmar, do pintor Domingos Pinho , realizada em 1981, “é-o por referência ao Retábulo de Issenheim, de Grunewald” (Chaves, 1982). Este recordar reporta-se à figura central, a crucificação.
Retábulo de Issenheim (1512-1516), Matthias Grünewald
Recordação de Colmar (1981), Domingos Pinho
Na cor destas duas obras encontramos correspondências. Nomeadamente, sendo mais sombria a atmosfera visual da ‘recordação’ e mais luminosa a do ‘retábulo’, a luz nos dois casos surge direcionada do mesmo modo, da direita para a esquerda e de cima para baixo.
“O fundo sombrio da ‘recordação’ é um fundo lúgubre, uma forma de luminosidade, e é uma espantosa superfície pela amplidão que nos suscita e pelos estratos anímicos que mobiliza e por isso se constitui numa entidade carregada de significações subconscientes. E para esse efeito a cor é um fator decisivo”. (Chaves, 1982)
Simultaneamente, a forma de Domingos Pinho figurar o lenho aparece investida de solenidade impar. “A contorção que confere ao pano transmite um sentido de tortura e drama”. “E uma corda (…) contribui para acentuar a transfiguração”.
“O todo aparece como uma expressão dolorosa mas contida, magoada mas sem erosão, tensa mas equilibrada sobre uma ambiência lúgubre mas não contingente”.
“Não será o calvário ortodoxo segundo os cânones da tradição ocidental mas é seguramente, operando por metonímia, uma representação sacra numa visão pessoalíssima e que não será descabido pensar como paixão segundo Domingos Pinho”. (Chaves, 1982)
Passamos agora a duas obras realizadas pela pintora Paula Rego em 2002: Pietá e Assunção.
Pietá (2002), Paula Rego
Assunção (2002), Paula Rego
Uma vez mais, a cor assume neste registo um caráter fundamental. No primeiro caso, subtis vibrações interiores refletidas pelos tons avermelhados, remetem-nos para sentimentos de paixão, de perda. No segundo caso, o preto, o violeta e a “imobilidade” dos tons esverdeados, figuram-se como uma tradução objetiva do luto.
A linguagem da cor, enquanto expressão de sentimentos de perda e luto, tem no vazio pictórico e no silêncio visual algumas das suas mais subtis manifestações.
A perspetivação deste “perfume das cores” ou da sua sonoridade será realizada de seguida.
O vazio e o silêncio
O vazio na pintura reflete estados de atenção não focalizada, bem como descontinuidades ou intermitências entre instantes. (Torres, 2015)
Este vazio emerge de múltiplos silêncios integrados na matéria visual, designadamente “silêncios geradores de tensão e densidade comovente ou silêncios revitalizadores de energia e expectativa”. (Torres, 2015)
Observemos para já a A Ilha dos Mortos (1880), obra-prima de Arnold Böcklin.
Sobre esta obra o seu autor diz o seguinte:
Aqui têm, como desejaram, um quadro para sonhar. Ele terá de parecer tão silencioso que nos assustamos se alguém bater à porta.
A Ilha dos Mortos (1880), Arnold Böcklin
Na verdade, há múltiplos silêncios. O silêncio maior é tudo o que resta, quando nada mais resta. É tudo o que permite escutar rumores ténues, longínquos e intangíveis, e sentir o cheiro das flores.
Este silêncio surge frequentemente associado ao branco e ao preto.
“O branco, considerado por vezes como uma não-cor, é como o símbolo de um universo onde todas as cores, enquanto propriedades de substâncias materiais, se desvaneceram. Este universo é de tal modo elevado, que dele não nos chega qualquer som. Apenas um grande silêncio se estende até ao infinito impenetrável e indestrutível. Na nossa alma atua como o silêncio absoluto.
O preto tem sempre uma ressonância trágica, quase maléfica. É o silêncio sem esperança”. (Kandinsky, 1987).
II PARTE
Uma viagem à pintura de Domingos Pinho
Olhar o vazio e escutar o silêncio é o objetivo da viagem à pintura de Domingos Pinho que sugerimos.
Nesta pintura encontramos objetos solitários dos quais emerge “uma dignidade que tem tanto de estético como de ético”. Objetos estes que, em função do ponto de vista, podem ser identificados como: “tributo a”, “panejamentos”, “mortalhas”, “elegias” ou outros poemas e evocações sensíveis de perdas e lutos.
Bibliografia e webgrafia
ALBERS, Josef, (1982). La Interacción del Color. Madrid: Alianza Editorial. (Tit. orig. Interaction of Color. 1975. Yale University.).
CHAVES, Joaquim Matos,. (1982). “Sobre Recordação de Colmar”. In Catálogo da Galeria (JN) do Jornal de Notícias. Porto.
EDELINE, Francis, et alii., (1992). Traité du Signe Visuel. Pour une Rhétorique de l’ Image. Paris: Éditions du Seuil.
GOETHE, Johann W., (1995). Traité des Coleurs. 3ª ed. Paris: Triades S. A. (Tit. Orig. Zur Farbenlehre. Didaktischer Teil.).
HUYGHE, René, (1986). O Poder da Imagem. Lisboa: Edições 70, Lda. (Tit. Orig. Les Puissances de l’ Image. Ed. Ernest Flammarion.).
ITTEN, Johannes, (1981). Art de la Couleur. Paris: Dessain & Tolra.
KANDINSKY, Wassily, (1987). Do Espiritual na Arte. Lisboa: Publicações Dom Quixote. (Tit. Orig. Ueber das Geistigein der Kunst, insbesondere in der Malerei. 1954. Paris: Editions Denoel Gonthier.).
MATRAVERS, Derek, (2001). Art and Emotion. New York: Oxford University Press.
PANOFSKY, Erwin, (1976). Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva.
SOURIAU, Étienne, (1990). Vocabulaire d’ Esthétique. Paris: Presses Universitaires de France.
TORRES, Isabel M. V. R., (1996). A Representação do Espaço Segundo as Abordagens Linear e Flexível. Estudo Comparativo com Alunos do 8º. Ano. Dissertação de Mestrado. Braga: Universidade do Minho.
TORRES, Isabel M. V. R., (2000). “Do Impressionismo à concepção filosófica do tempo”. In Homenagem ao Prof. Dr. José Ribeiro Dias. Braga: Universidade do Minho. Instituto de Educação e Psicologia.
TORRES, Isabel M. V. R., (2015). Leitura Multiperspetival do Impressionismo. Um Estudo de Modelos Mistos. Tese de Doutoramento. Aveiro: Universidade de Aveiro.
WITTGENSTEIN, Ludwig, (1987). Anotações sobre as Cores. Edições 70. (Tit. Orig. Bemerkungen Uber die Farben. 1977. G. E. M. Anscombe.).