
DO IMPRESSIONISMO À CONCEPÇÃO
FILOSÓFICA DO TEMPO
HOMENAGEM AO PROFESSOR DOUTOR
JOSÉ RIBEIRO DIAS
Resumo
Partindo do paradigma impressionista na Pintura - o qual enfatiza o domínio do efémero e ocasional, sobre o permanente e frequente, e estratifica os fluxos momentâneos de tempo, assinalando a eterna instabilidade que os singulariza – estabelecemos em seguida um paralelismo com a interpretação do tempo na filosofia de Henri Bergson.
“A unicidade do momento que nunca antes existira e nunca se repetirá, foi a experiência fundamental do século XIX”, diz Arnald Hauser (1982: 1112). Poderíamos acrescentar que esta unicidade foi, também, uma das raízes do Impressionismo.
Definido como “uma atitude de espírito”, por René Huyghe (1974: 10), e como “uma apologia da sensação pura e imediata”, por Maurice Sérullaz (1985: 13), o Impressionismo na pintura pode, pois, ser considerado como uma forma, simultaneamente disjuntiva e sincrética, de representar a complexidade de múltiplos fenómenos, evolucionando em incessantes, diversificados, e fugidios espaços de tempo, espaços de tempo estes que a pintura impressionista eterniza, sublimando-os.
Emergindo num contexto empírico em que todos os grandes problemas sociais, políticos e culturais são questionados, o Impressionismo expressa essas tensões, esses tumultos, essa fractalidade social. Por outro lado, manifestando-se numa época onde, a nível científico, a matéria era considerada um receptáculo de energia que, liberada numa apoteose explosiva, era tanto uma fonte de destruição como de pulsão, similarmente, a nível artístico, o Impressionismo dir-se-ia que oferece uma imagem desta realidade “abolindo radicalmente as formas e volatizando-as na irradiação de luz da sua decomposição cromática”, (Huyghe, 1976: 16).
E se por tudo isto o século XIX “pode ser, apropriadamente, chamado o século das revoluções”, como assinala René Rémond (1994: 137), uma dessas revoluções ocorreu por certo no domínio estético com os pintores impressionistas.
Edouard Manet, por exemplo, num estilo do qual foi “banida a retórica”, (Cachin, 1984: 18), “rejeita todos os métodos criados desde o tempo de Giotto para transmudar uma superfície plana num espaço pictórico” (Janson, 1982: 608). Desse modo, Manet inicia a desconstrução da ideologia ilusionista originária das representações em perspectiva. Concomitantemente, Manet revoluciona os critérios do gosto, e os conceitos de beleza, reivindicando a prerrogativa de harmonizar sobre a tela “quaisquer elementos que lhe agradem para a obtenção de um efeito meramente estético” (Janson, ib: 607). Assim ainda, Manet introduz o princípio da “autonomia da visão artística” (Venturi, 1973: 7) e apresenta-se como uma das figuras nucleares da modernidade.
Por sua vez, Claude Monet, Edgar Degas, Pierre-Auguste Renoir e Alfred Sisley, juntamente com outros pintores impressionistas, contribuiram, também, para libertar a pintura de conceitos académicos neoclássicos, espartilhos temáticos históricos, ou imposições ideológicas e literárias. Através de uma linguagem espontânea e esteticamente inovadora, e mediante uma experimentação conceptual que atomiza os factos observados, estes artistas – em oposição a uma representação literal do espaço envolvente – contrapõem uma abordagem que valoriza as percepções sensoriais puras, de uma realidade circundante perpetuamente envolvida no seu movimento temporal de crescimento e desagregação. Neste sentido, para além de signo plástico, ou “linguagem do inefável”, (Torres, 1996: 14), para todos eles o “tempo transformou-se numa dimensão da vida”, utilizando as palavras de Bernard Denvir (1992: 343).
Todavia, é sobretudo na obra de Claude Monet que encontramos a ênfase maior neste problema central da modernidade, ou seja, a temporalidade.
Na verdade, se Charles Baudelaire (1996: 355), no seu ensaio seminal designado O Pintor da Vida Moderna, defende que “a modernidade é o transitório, o efémero, o contingente, a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável”, e prossegue sublinhando, “este elemento transitório, fugidio, cujas metamorfoses são tão frequentes, não tendes o direito de o desprezar ou de o dispensar”, Monet, nesta vertente, parece partilhar idênticos pontos de vista existenciais. A testemunhá-lo estão as suas famosas Séries.
Nestes conjuntos de pinturas – subordinadas ao mesmo tema como, por exemplo, a Catedral de Ruão, mas, onde emergem como verdadeiros sujeitos da obra, por um lado, a luz e a cor, e, por outro, o tempo no instante que passa – de forma infatigável Monet fragmenta a matéria em múltiplas partículas brilhantes e vibráteis, por forma a reproduzir a intensidade luminosa de infinitos flagrantes da realidade, efémeros e fugazes, captando os seus elementos cambiantes, em intervalos de tempo diminutos. Seguindo uma perspectiva wittgensteiniana de que “o mundo é a totalidade dos factos, não das coisas” (Wittgenstein, 1987: 29), e bergsoniana de que “há mudança, mas não há coisas que mudam” (Bergson, 1987: 21), tanto em cada tela per se como, mais intensamente, em cada uma das diferentes Séries, Monet, libertando-se de conceitos académicos anquilosantes, e de conhecimentos a priori sobre a natureza, os seres e os objectos, regista a essência pura da realidade expressa nas complexas transformações lumínicas e cromáticas do continuum temporal.
Este “abandono ao estado de espírito passageiro, como o mais alto e insubstituível valor”, este “anseio de viver o momento que foge, de ser por ele absorvido”, (Hauser 1982: 1068), são em si próprios aspectos que contêm algo de extraordinário, quer na prática pictoral de Monet, quer na prática pictoral de outros pintores impressionistas. Dir-se-ia que estes artistas não só se preocuparam com o tempo, enquanto objecto estético, como se impregnaram dos seus odores, produzindo uma arte que, pelas suas ressonâncias, se projecta num outro tempo, ou para além do tempo, num tempo imanente e imensurável.
Entretanto, este tempo expresso na pintura impressionista, parece apresentar, também, ressonâncias na dialéctica de filósofos como Henri Bergson. Lancemos, então, um olhar sobre a concepção do tempo na sua obra filosófica.
Segundo Bertrand Russell (1977: 288), a “doutrina” do tempo em Bergson representa um dos alicerces da sua filosofia. Nesta doutrina, o tempo é concebido com um “perpétuo fluxo em que nada flui” (Russell. ib: 288), e apresenta-se como algo possuindo características indivisíveis, e cuja faculdade de compreensão advém, quase exclusivamente, do poder intuitivo.
“O tempo, essência da vida, é o que [Bergson] chama ‘duração’ ”, afirma Bertrand Russell. Esta duração em Bergson, assegura ainda, “é a verdadeira matéria da realidade perpetualmente envolvente, nunca terminada” (Russell, 1977: 286).
Nas palavras do próprio Bergson (1987: 15-23) “a duração é o que muda por natureza”, sendo, a “duração pura”, “uma sucessão de mudanças qualitativas que se fundem, se interligam, sem contornos precisos, nem tendência alguma a exteriorizarem-se umas em relação às outras (...)”.
Bergson concebe também a duração como uma “multiplicidade qualitativa”, multiplicidade esta relacionada com os estados de consciência, e que não pode ser objecto de operações de cálculo ou adição. A duração é igualmente concebida por Bergson como “o movimento”, e como “o indivisível e o substancial”. “É precisamente esta continuidade indivísel de mudança que constitui a duração verdadeira”, sublinha a este propósito. Por último, e em síntese, Bergson concebe a duração como um “absoluto” que, pode dizer-se, tem em atenção o todo material e temporal.
Por outro lado, em Bergson, a duração revela-se vincadamente associada à memória: uma memória que “prolonga o antes no depois e os impede de ser puros instantâneos, aparecendo e desaparecendo num presente que renasce sem cessar” (Bergson, 1992: 41). Diz então:
“Tomemos o mais permanente dos estados internos, a percepção visual de um objecto exterior imóvel. O objecto pode permanecer idêntico, e eu posso olhá-lo do mesmo lado, segundo o mesmo ângulo, com a mesma luz: a visão que tenho dele, não por ele, difere da que acabo de ter, mais não fora porque a visão envelheceu um instante. Aí está a minha memória, que insere algo desse passado neste presente. O meu estado de alma, ao avançar na rota do tempo, cresce continuamente com a duração que recolhe; dir-se-ia que faz bola de neve consigo mesmo.” (Bergson, 1987: 8)
Em toda esta concepção do tempo na filosofia de Bergson, poderia perguntar-se qual o papel da intuição. Na verdade, a intuição surge aqui como um “método para entender os verdadeiros problemas e as diferenças de natureza” (Bergson, 1987: 23); como um “impulso (impulsion) que dá o ímpeto (élan) (Bergson, 1994: 50); como um veículo que permite “compreender a mistura de passado e futuro” (Russell, 1977: 287). Por outras palavras, nesta filosofia, a intuição emerge como a “coincidência absoluta do sujeito com o seu objecto, do sujeito consigo próprio” (Neves, 1994: 35).
Ora, a coincidência ou relação de continuidade, entre a pintura impressionista anteriormente referida, e a concepção bergsoniana do tempo, que acabamos de visitar, parece uma coincidência ou relação indubitável.
Neste âmbito, escreve Arnald Hauser (1982: 1112): “o pensar impressionista tem a sua mais pura expressão na filosofia de Bergson, principalmente na interpretação do tempo – meio que é o elemento vital do impressionismo”.
Por sua vez, Vladimir Jankélévitch (1989: 35) assevera:
“A intuição da qualidade pura [nascida da purificação de recordações creditadas em nós pelo hábito, a linguagem, os preconceitos tradicionais ou, como diz Descartes, pelas narrativas da meninice] como o ídolo do nada desvanece-se para todo aquele que não tenha reconhecido que a matéria não é nem uma base amorfa, nem uma substância indeterminada ou indiferente a toda a determinação. Neste caso, mas somente neste caso, o bergsonismo será, como muitas vezes se repete, um ‘impressionismo’.”
Porém, a controvérsia sobre o Impressionismo em Bergson não termina aqui. Entre outras razões porque, como diz o Professor Doutor José Ribeiro Dias (1988: 173), “não há última palavra seja sobre o que for”.
Referências bibliográficas
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